domingo, 6 de setembro de 2009

não chore, beibe!


foto: Trafalgar Square Pigeons/ mr. Ducke/flickr

Não chore, beibe!
O que nos resta senão arrancar
Deste solo árido
Esta impossível flor
Feita de pedra e cor?
O que nos resta, senão viver,
Pressentindo na entrelinha
O contínuo desfazer?

...Olho teu rosto claro e este sorriso largo que faz vibrar os teus olhos, emoldurando teus lábios. Na cor deste teu sorriso vejo a dimensão dos sonhos, dos loucos sonhos que inda em vão sonhamos.

...Cabem nele velhos e longos dias de espera e encantamento, os velhos sonhos reamanhecidos em cada manhã de névoa.
Neste teu sorriso largo cabe o mundo de brinquedo, com que brincamos um dia, pensando em inconseqüências, quando as manhãs eram promessas, as tardes longas esperas e as noites brilhos de estrelas. Varávamos a noite a dentro, em ritmo alucinado. Tudo era festa, então, tudo era festa.

O que nos resta, senão este acre sabor
De coisas que não sabemos mais?
Já não sabemos a sonhos
Nem a luzires de estrelas
Nem a madrugadas densas
Prenhas de luz
Que hoje nos trazem marcas
Do tempo, animal medonho
Que não soubemos domar.

...E o sonho já não cabe na palma de nossas mãos. Seremos hoje áridos arremedos de nós mesmos, nesses medos ensimesmados?
Mundo, mundo, mundo,
Seremos eternamente enigmas de nós mesmos
Esfinges de nós mesmos
Devorando-nos as entranhas?

terça-feira, 11 de agosto de 2009

líriosdelirios


foto: lirio aranha- flickr/javier volcán

, pois assim era mais complicado fazer as coisas que devia fazer. sei lá, noi no ceilão sósonhávamos com todas aquelas coisas que pensávamos que era o melhor the best do the best eu ouvia na tv e você me enchia o saqco do the best do the best besta abestalhado eu buscava fazer o meu melhor como se fosse o atleta numero um do ranquin mundial e você nem aí você saía de madrugadas avarandando noites estreladas e de luas cheias de doer nas vistas e sumia sumia sumia e eu a miar sozinho no vão dos telhados buscando conforto em camas alheias e chorando suas ausências como pitangas recémcolhidas eu: encolhido enroscado embolado cuca bolada deu pra sacar baby? você chegava de manhã romã avermelhadas faces olhos estridentes dentes estrilando descarrilando verbos e versos sobre minha cabeça zonza pernas bambas de noites mal dormidas em camas de outras e sói pensando na minha baby trespassando corações e enbrutecendo tesões pela naitte...ai, nem quero pensar já me doem as cabeças caracas por ondea você andou meu bem?meu bem bambam bombonando por aí e aí?como fico eu nesta parada? ah- o amor- esta coisa mal passada pesada este sangue pisado e este nariz sangrando e este tesão sem rumo...qualquer dia sei não pego você e levo,por aí, para dançarmos danças rituais nas clareiras das florestas daquelas de contos de fada é foda tô delirando, mas,...

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A ÚLTIMA VEZ QUE VI MALU


foto by: Paulo Côrtes/flickr - Lembranças Azuis


a última vez que vi malu ainda era primavera e a gente brincava dizendo assim o que é que há onde você está com a cabeça que não vê as flores na varanda do chalé nem sente as cores que se abrem junto e que derramam aromas de amoras e amores sobre nossas cabeças e narinas e esses cheiros eu carrego até hoje não sei se isso passou nem sei se isso aconteceu ou se foi apenas uma miragem imagem de um sonho ou cena de um filme ou...

a última vez que vi malu era o inverso da primavera era um inverno frio e nós dois como ursos hibernados dentro de um chalé no meio das montanhas geladas era serra do cipó ou eram os montes urais ou era no canadá nem sei só sei que as manhãs eram geladas e as maçãs não floresciam nem eu podia falar nem ela pois as mãos enregelavam quando a gente tentava apanhar as palavras saídas da boca e que se transformavam em cubos de gelo quebradiços que batiam no chão e ploft se acabavam em água fria sólida e nada ficava de sólido nem de nós no ar apenas aquela solidão indesejada aquele estar ali e de repente não saber estar e aí...

ai ai ai- da última vez que vi malu era um outono desses nostálgicos desses que bota a gente todo troncho pensando ah, outonos são aqueles do hemisfério norte em que as arvores envelhecem as folhas vermelhas que caem e formam tapetes lindos vegetais nos parques limpos e calmos ah, que nostalgia é essa desses outonos que a gente nem viveu? nosso outono era aquele dos ipês e dos apês a gente enrubescendo com sol e se arroxeando como os ipês que nos escandalizavam com a beleza insolente e crescente dos buquês coloridos só flores sem folhas aquela coisa linda e então...

da última vez que vi malu era verão e o sol ardia- ah! era verão aquela estação das propagandas, das cervejas, dos corpos nus ou quase, das caminhadas na praia, dos sol-nascentes e poentes policromáticos, das viagens a itacaré a jeri a caraíva ah...verões de sol em brasa e corpos idem mas da última vez que vi malu naquele verão não havia nada disso isso era apenas um conceito uma idéia nós estávamos atazanados com teses de mestrado e trabalhos finais e não tinhamos nem tempo de sair de casa para tomar uma cerveja com os amigos e eu me lembro de ter visto a malu ali linda com os braços cheios de livros e eu dei uma trombada nela e ela deixou cair os livros no chão tipo cena de cinema eu me agachando apanhando seus objetos ela sorrindo diáfana e...

não me lembro da última vez em que vi malu.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

AZUL PROFUNDO



foto: shades of blue - by Dannyman/Flickr


-Pare aqui o carro, amor! Quero ver mais de perto aquela planta. Veja como ela irradia brilho, como são verdes suas folhas! É fantástica! Pare o carro, quero observá-la.
O marido, contrariado, pára o carro aos poucos. O garoto, aproveitando a parada, salta para a estrada e começa a correr pelo morro abaixo. A mãe o acompanha, pois a planta repousa lá embaixo, na correnteza de um córrego. A natureza exuberante se escancara aos olhos cinzentos dos visitantes urbanos; aqui e ali grandes árvores cobertas de cipós e de belas orquídeas, o solo coberto de samambaias e musgos de todas as cores.O sol, se derramando, desenha filigranas de luz neste mundo que parece de fantasia e que convida ao ócio e à contemplação. Ela deixa-se levar por esse sentimento de lassidão e desce vagarosa, para não escorregar nas pedras pontudas que brotam do solo, rasgando a beleza, contraponto. O garoto já está lá embaixo e m olha os pés na calma e frieza do riozinho, compondo um quadro de beleza ímpar, numa perfeita integração com os elementos, onde a planta repousa, como rainha, com suas flores de um azul violáceo profundo, raízes mergulhadas no cristalino das águas.
Encontra-se agora na beira do rio, observando, fascinada, a planta que a atrai, hipnotizando- a. Olha-a encantada e não resiste:
-Amor, desça aqui, quero que você pegue esta planta para mim. Vai ficar linda lá em casa. Posso coloca-la num grande pote de vidro, para enfeitar a sala. Olhe a beleza das flores, que azul intenso! Anda, venha tirá-la para mim.
O marido desce contrariado a encosta, cansado, arranhando-se nos galhos e de mau humor entra no rio, para atender ao pedido da mulher. Aproxima-se da touceira de folhas verdes e flores azuis, leva as mãos por baixo para arrancar as raízes, mas não consegue tirá-la de uma só vez. Sente resistência, parece que está presa à água. Puxa com força, dá um safanão e assim, num arranco, a planta se solta. Volta à margem e entrega-a à mulher, que maravilhada passa as mãos sobre as folhas compridas e brilhantes, que brilham ainda, encantando-a.
À tarde retornam à casa, ela ansiosa entrando pela pela sala e chamando a empregada:
- Lúcia, olha só que maravilha de planta encontramos em nosso passeio. Veja só que brilho, que flores! Arranje um bonito pote de vidro para que a mergulhemos logo em água, pois pode murchar”. A empregada corre a buscar no armário um pote adequado, de cristal verde, que realçará ainda mais a cor fantástica da folhagem. Quando chega à sala encontra a mulher contrariada, nervosa, as flores haviam murchado de repente, pendiam mortas das hastes.
-O que aconteceu? pergunta Lúcia.
-Não sei, de repente, enquanto fui ao banheiro, elas murcharam. Será que é por causa do calor?”
-Não se importe, logo, logo, estará florida de novo, enfeitando a sala e colorindo-a com seus reflexos azulados.
-Deus queira, Lúcia, que ela volte a brilhar. É tão linda, que dá pena morrer. Cuide bem dela.
-Pode deixar. Colocarei pedras, adubo, logo estará bonita de novo.
No entanto, os cuidados pareciam dar em nada. A planta murchava, a cada dia, e as folhas, antes verdes, estavam foscas, sem sinal de florescência. Todas as manhãs ia a mulher a procurar botões, sinais de que novas flores estavam por surgir. Nada acontecia, entretanto; as flores teimavam em não despontar e ela não entendia o porquê. Com o tempo, foi se desligando, pensando em adquirir uma nova planta para colocar na sala. Iria a uma floricultura, compraria um belo vaso, e jogaria fora aquela planta que insistia em não florescer. Naquela noite, teve inúmeros pesadelos. Sonhou que estava novamente à beira da encosta, mas sozinha. Olhava a planta fascinada, e parece que se sentia hipnotizada por ela, que brilhava, fosforescente, no meio do rio. Entrava água adentro, procurando arrancá-la, mas à medida que caminhava, mais a planta se afastava e ela, desesperada., entrava mais e mais no rio, que já não era um rio, era um lago enorme, um espelho gelado que queimava em azul. Azul profundo. E sem saber nadar, ia aos poucos se afogando, sem conseguir tocar a planta. No auge do desespero, quase engolida pela água, acordou assustada, gritando pelo marido, que a acalma, o que é isso, mulher?
– Estava tendo um terrível pesadelo, sonhava com aquela planta da sala, que você arrancou do rio para mim. Ela queria que eu me afogasse num grande lago gelado queimando de azul.
– Ora, esqueça isso! Você anda muito tensa, pare de se preocupar com bobagens. Qualquer dia desses ela vaia florescer, vai ficar uma beleza, igual lá no rio, você vai ver.
A mulher, mais calma, volta a repousar, esquecendo-se do incidente desagradável, e passados alguns dias já não se lembrava mais do acontecido. Tinha-se esquecido completamente de retirar a planta da sala, para substituí-la por outra. Nos últimos dias estivera muito ocupada, muitos problemas, muitas decisões a tomar no escritório, onde era advogada. Deixara a cargo da empregada todos os pequenos detalhes caseiros, dos quais gostava de se ocupar, como hobby, e, entre eles, o de cuidar das plantas, que a tornavam mais calma, mais zen, mais bonita até, ela dizia.
Numa manhã de domingo, quase que por mágica, a planta apareceu verde e bonita, com folhas brilhantes e pequenos botões azul violáceos que começavam a se abrir, deixando entrever um interior aveludado, uma visão de rara beleza. O primeiro a notar fora o marido; havia acordado mais cedo para dar um mergulho, quando deu de cara com a planta enchendo a sala com a sua presença azul. Correu ao quarto, chamando a mulher:
-Vem, Juliana, ver o que aconteceu. Que beleza, você nem vai acreditar.
-O que foi, Renato? O que é? Que maravilha é essa que faz você me acordar a esta hora? Estou morta de sono, diga logo o que é.
-Não posso dizer, você tem que ver, está muito bonito.
Juliana levanta-se meio cambaleando. Está muito cansada, estivera ontem até tarde numa festa, bebera muito, e quase não se agüenta de pé. Quando chega à sala solta um grito de surpresa ao ver sua planta, que agora parece estar mais verde e de botões mais entreabertos. Não acredita no que vê.
- Meu Deus, que beleza! O que terá acontecido? Será que Lúcia usou algum produto mágico para fazer essa revolução? Animada, vai até o fundo da casa e chama a empregada, a perguntar-lhe o que tinha usado na planta para que ela se renovasse tanto.
- Não usei nada de especial, Dona Juliana. Aliás, eu nem tinha reparado nela hoje.Ontem, quando a molhei, estava seca e feia, como de costume. Deve ter acontecido um milagre nesta casa. Não entendo!
A partir daquele dia, mais bonitos ficavam os botões e mais brilhante o verde das folhas. Todos que vinham visitar o casal perguntavam que planta era aquela, onde haviam comprado, qual o nome. E o perfume? Ah , esse era indescritível, embriagava as pessoas, como se tivessem tomado taças de champanhe ou cheirado fragrâncias exóticas. Era adocicado e pegajoso, entrando pelas narinas até o sangue. Era alguma coisa de muito diferente, que começava a perturbar a vida dos personagens que viviam naquela casa. E desses, apenas a empregada percebia o que estava acontecendo.
Muitas vezes encontrara Renato , com aparência petrificada, olhando para a planta no meio da sala. Outras vezes, era Juliana que ela via, rabiscando flores azuis em sua agenda de compromissos. Julinho, esse é que deixava transparecer mais sua estranheza. Era cantor, tinha um grupo de heavy metal e curtia muito ocultismo e esoterismo. De repente, todas as suas canções passaram a falar de flores azuis, de labirintos intrincados, de bocas aveludadas, de sexo, muito sexo, quando antes suas músicas eram rocks políticos e engajados. Engraçado é que ninguém percebia o que estava se passando, a não ser Lúcia. Essa não mudara e nem se sentia afetada. Cuidava normalmente da planta, que a cada dia se tornava mais bonita. Só isso. Para ela, era apenas uma folhagem exuberante na sala de visitas.
Quando sentiu que as coisas estavam piorando, que as pessoas estavam ficando mais estranhas e afetadas, resolveu conversar com elas. Mas usou de uma tática diferente. Assim, para falar de Julinho, procurou os pais, dizendo que estava achando o garoto muito esquisito, que alguma coisa devia estar acontecendo com ele. Contou dos olhos vidrados, dos poemas que ele escrevia e jogava no lixo, coisas mórbidas e imorais, nem estava mais reconhecendo o garoto. Mas os pais não achavam nada disso estranho, dizendo-lhe que estava imaginando coisas, que o garoto estava atravessando uma fase difícil da vida.
- A adolescência é assim mesmo, Lúcia, cheia de novas idéias, de quebras de tabus, de rompimentos. Mas nada disso importa, é bobagem sua, dentro de poucos dias o Julinho fica legal de novo. Não se preocupe.
Com Julinho, nem conseguiu falar. Ela só o encontrava mergulhado no papel , escrevendo, escrevendo, ou então ouvindo música. Deixou as coisas como estavam, parou de se preocupar, voltando a cuidar de suas tarefas; que os três cuidassem, cada um, de suas vidas.
Muito tempo depois, numa noite, foi acordada com sussurros na sala. Nem sabia que horas eram, pois tinha dormido cedo. Os sussurros estavam baixinhos, mas percebia bem que vinham da sala e então, curiosa, levanta-se e vai até lá, para ver o que estava acontecendo. Evita acender a luz; não quer assustar quem quer que lá esteja. Quando chega à porta pára e fica a ouvir, reconhecendo Julinho, sentado em posição de lótus em frente à planta, como se cultuasse uma divindade. Sussurra coisas ininteligíveis. Algum tempo mais tarde ela teria que se recordar dessas palavras do garoto, para entender o que havia acontecido aos habitantes daquela casa.
Julinho sonha, Julinho delira, e a luminosidade azul violeta da planta colore seu rosto com uma aura que parece isolá-lo do mundo exterior. Julinho sonha, e de boca aberta soluça em frente à planta.Tem os olhos fixos na flor, na primeira flor que se abrira completamente, e nem sabe por que está ali.
Julinho delira
-Não, não, não, eu não tive culpa. Não, eu não queria, apenas aconteceu e não pude evitar. Meu Deus, não tive culpa. O que estou fazendo aqui? Não sei, estava em minha cama, dormindo, de repente encontro-me aqui. É um pesadelo, meu Deus, eu nunca havia me preocupado com isso antes, foi um fato que passou, foi há tanto tempo, eu era ainda um garoto todo vestido de branco, eu era uma ovelha vitima a ser sacrificada no altar. Lembro- me bem do ritual, de penitências e mea culpas mea culpas, mas eu não sabia, naquele tempo, das possibilidades do meu corpo e do meu espírito. Eu não podia imaginar que era muito mais do que um complexo de carne, músculos e nervos, sangue e pulsações. Pulsações. Pulsações.
Tenho febre, tenho frio, e esta flor aberta e aveludada me persegue. Vejo dentro ela e ela vê dentro de mim. É como um carrasco me vencendo aos poucos, sugando de mim toda a seiva, quer sobreviver a mim, quer o meu sangue, meu sangue precioso para poder viver. Tenho febre e tenho frio, e divago, transpiro, transfiguro-me e sou só delírio, eu percebo meu delírio e já não sou mais eu, sou apenas personagem de um sonho atormentado. Eu me reencontro, há dez anos atrás, ajoelhado em frente ao padre, no escuro, numa triste igreja de uma triste cidade . Cabelos pretos, olhos vivos, eu sou os pecados do mundo, eu sou os pecados do mundo. Mea culpa, mea culpa, senhor eu não sou digno, eu não sei a palavra, senhor, a senha, qual é a senha, a saída, tende piedade de mim, vinte e cinco ave marias e trinta pai nossos de joelhos e prometa nunca mais pensar nessas coisas nem ter maus pensamentos eu prometo, eu prometo senhor, eu criança sem consciência do pecado eu juro eu creio em deus pai todo poderoso maior do que eu, seixo rolando nas mãos do mundo, pião rodando na roda desconhecida, feito vítima, feito carrasco lidando com conceitos que eu não entendia. E inconscientemente arquitetando minha vingança. Sim, eu temia a Deus, mas não temia a deus, aquele deus. E o que se passava na minha cabeça, naquele tempo, ninguém sabia.
No dia da minha primeira comunhão, eu todo de branco, imaculado cordeiro abarrotado de conceitos e de barriga vazia, fui levado ao sacrifício. E na derradeira hora não vi Deus na minha frente. Vi uma flor entreaberta e aveludada, me chamando para si. Eu sabia que nãol seria perdoado mas eu me vingava e era doce a vingança: quando recebi a hóstia na boca tomei-a nas mãos e, para espanto de todos, mastiguei com vontade. Nessa hora o sangue escorreu pelos cantos da minha boca, em meio aos ohs de espanto e desespero. Eu sentia o sabor acridoce na língua. A boca manchada de sangue, os gritos das beatas, os desmaios, e eu me sentindo homem, eu, que me revoltei, eu, o vampiro excomungado. E a flor pulsava na minha cabeça; só muito mais tarde percebi que estava começando a traçar ali as primeiras linhas do meu caminho pelo mundo.
-Flor, flor, deixa-me, o que está se passando comigo, onde estou? Lúcia acorre, nervosa, a ajudar o garoto que caiu desmaiado no chão. Toma-o ao colo e o leva para a cama. Sente-o muito leve e pálido. Pobre menino! Voltando para seu quarto passa pela sala e percebe a presença enorme da flor, que domina todo o ambiente. Sente-se nervosa com o acontecido e vai dormir muito preocupada.
Nessa noite, Julinho sonha. E no sonho vê a flor crescendo, com sua boca aveludada entrando no seu quarto e engolindo-o, ele sentindo-se preso pelos estames, escorregando por aquela abertura viscosa, até perder os sentidos.
Está amanhecendo o dia e Lúcia já está de pé. Dormiu pouco, teve pesadelos, sonhou com Julinho sendo engolido pela flor da sala, gritando, pedindo socorro, e ela sem poder ajudar. Ficou assustada e perdeu o sono. Vai ao quarto para ver como ele está. Ao olhar a cama, um choque: Ele não está lá e a cama está desarrumada.
-O que será isso, meu Deus? Será que o sonho era real? Mas como pode uma planta fazer isso? Besteira, daqui a pouco ele aparece. Vou perguntar à Juliana se ele saiu mais cedo hoje.
Desce as escadas, à procura da patroa e encontra-a à beira da piscina, tomando sol. Lúcia não havia ainda notado, mas ela estava muito pálida, de uma coloração meio doentia, meio azulada.
-Dona Juliana, a senhora viu o Julinho por aí?
-Não vi, Lúcia. Também não estou encontrando meu marido, precisava que ele me levasse à cidade, se você o vir, chame-o aqui.
-Pode deixar, vou procura-lo para a senhora.
-Procure-o na biblioteca, pode ser que esteja lá. Ontem à noite estava lá, escrevendo, quando o vi pela última vez.
vaso com sua presença. Ela procura Renato por toda a casa, indo encontrá-lo no jardim, caído ao chão, usando a roupa da noite anterior. Tinha vindo ao jardim buscando inspiração para seu romance quando ouviu vozes chamando. Sentia que seu filho corria perigo e saiu para ajudá-lo. Ao mesmo tempo, porém, ouvia outras vozes, parecia um pesadelo. Mas estava acordado e sabia disso, pois sentia a grama úmida sob os pés.
-Venha Renato, venha me ver, venha viver a minha beleza, buscar em mim sua inspiração. Sou Íris, a mulher azul que vive em seus sonhos desde sempre. Sou a mulher ideal, a mulher perfeita e estou ao seu alcance, pulsando para recebe-lo. Não fuja de mim, você sabe onde estou, meu lugar é lá. Espero por você, não fuja dos meus apelos e dos meus labirintos.
Não se lembra do que lhe aconteceu depois. Apenas sabe que passou horas terríveis, das quais não se lembra completamente. Está muito pálido, sente-se mal, Lúcia o ampara e o leva para o quarto. Pede a Juliana que chame um médico para examina-lo.
Renato, a cada dia vai piorando. Está muito magro, constantemente tem pesadelos, acordando ensopado de suor, ouvindo o filho chamá-lo de longe, pedindo socorro. Lembra-se vagamente de túneis, de ondas azuis, de um amplo horizonte violáceo, de ter sido expulso de algum ninho, só isso. Com o tempo, enlouquece e é levado para uma casa de repouso.
Em casa, já não se fala mais sobre ele ou Julinho. Juliana já os esqueceu, apenas Lúcia tenta descobrir o mistério do desaparecimento do menino. Juliana quase não vai mais ao escritório , pois sente-se muito cansada. Passa os dias à beira da piscina, olhando fixamente para a água, hipnotizada pelo azul.
Lúcia quer deixar a casa, não se sente bem ali. Sabe que está acontecendo algo anormal , não sabe o que. Instintivamente, culpa a planta por tudo aquilo. Ela agora viceja, bela e imponente, dominando a sala. Lúcia parara de cuidar dela, mas não adiantou, não murchara, pelo contrário, ficava cada dia mais bonita e brilhante.
Uma manhã Lúcia sentiu algo de diferente no ar, quando acordou. Havia um cheiro forte pela casa toda, doce, pegajoso, e a porta da sala estava empenada. Quando tentou abrir foi jogada ao chão por uma onda verde de folhas e flores que cresciam, desordenadamente. Antes que fosse sufocada conseguiu correr para o jardim, onde encontrou Juliana sentada, com os olhos fixos no vazio, indiferente.
Desesperada, corre a procurar abrigo. Quando se volta, para observar a casa, já não vê mais nada de anormal; apenas um cheiro ácido domina o jardim, deixando o ar impregnado. Juliana não está mais lá. Quando entre novamente na sala vê que do vaso, até então belo e imponente, quase nada resta, a não ser folhas murchas, pendentes, e flores mortas, podres, ressecadas, que ainda guardam nas pétalas vestígios de um azul violáceo e profundo.

ANIMA


foto: cosplay team belgique anima - by: Kmeron?flickr

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade
.

Do poema “Evolução” de Antero de Quental

Havia nascido sob o signo da lua. E da água. Era de Caranguejo, e mutável como camaleão. Como a lua, tinha fases.

Nascera mulher, mas jamais se contentara com essa simples forma: queria ter todas as formas, ser peixe, ser pedra, ser planta, nuvem e bicho.
Por isso, a cada estação transmutava-se, fazendo uso de mágicos poderes que recebera de gnomos e duendes que encontrara um dia na rua, ela conta, e os outros ouvem espantados, quando sentem se materializar em suas palavras esses seres imaginários, duendes, gnomos e fadas. Ela conhece todos eles, sabe das vaidades, desejos e sonhos de cada um. Por isso, as fadas, duendes e gnomos deram-lhe mágicos poderes, e, entre eles, o de transmutar-se em qualquer ser vivente, poder que usa até a extrema exaustão.

Na última primavera, foi flor.
Renasceu como flor, flor vermelha e viva, e de manhã sentia a carícia do sol, como se fosse uma mão de homem penetrando-lhe os mais íntimos segredos. Abria sua corola e as pétalas separavam-se vagarosamente, para receber todo o brilho e todo o calor daquele sol benfazejo. E junto com o sol, sentia também o orvalho molhando-a e adentrando-lhe o corpo, como num interlúdio amoroso. E sentia toda a volúpia da flor no seu íntimo encontro com seus amantes naturais: o sol e o orvalho.

No verão, foi peixe.
E singrou profundezas abissais, navegando líquidas transparências, onde o sol atravessava-lhe as escamas e a fazia como um ser de brilhantes, brincando no fundo de um aquário gigantesco. E o sol ainda persistia, a lhe fazer carinhos através da matéria líquida. E sentia o cio do peixe, a maravilha de amar sob uma imensidão de mar e de procriar seres líquidos.

Após ter sido peixe, foi planta.
Frondosa árvore, carvalho milenar, havia se transmutado em árvore para sentir toda a sensação da seiva da vida a lhe percorrer tronco e galhos, para sentir toda a sensação de árvore, em seu habitat natural.. E ela toda foi planta, inteiramente. Buscava o sol nos seus mais verdes galhos e sugava da terra o sal e a água, matérias vitais. E o sol e a água novamente presentes em sua forma orgânica. Sentia a carícia da seiva a percorrer seu corpo e o sol a devassar seus galhos mais altos, com seus raios de calor.

No inverno, transformou-se em pedra. A mais minúscula das pedras, no meio de outros milhões de pedras iguais perdidas no meio do caminho. E em sua insignificância percebia toda a sua importância, como elemento de um mundo em que cada um tinha seu destino e sua história. Quando nevava, recobria-se de neve e sentia o frio a lhe penetrar a pele e os ossos. Quando chovia, gotejava a umidade que trazia vida. E quando o sol renascia, deixava-se ficar, exposta, sentindo-o em sua pele mineral, em todas as corres. Gostou muito de ser pedra, de ser a superfície, de ser pisada e amalgamada no chão. Sentira o gosto da terra, e novamente agradeceu aos seus protetores por experiências tão gratificantes.

Foi fruto, no outono. Doce fruto, de polpa macia e carne branca, a sentir a volúpia dos bicos de passarinhos a lhe abocanhar pedaços, no processo de amadurecimento. Sentia-se pendente do galho, solta no ar; dançava no ar quando o vento dava nos galhos da árvore. Ao final da estação, antes de amadurecer completamente, foi colhida por uma mão, que a acariciou como homem nenhum do mundo havia antes acariciado. E sentiu um respirar ofegante sobre seu hálito, e uns olhos que a olhavam com amor e ânsia. Sentiu depois os dedos dessa mão afundando-se em sua carne branca, e depois os dentes, grandes garras afiadas, a lhe devassarem a carne, como adagas impiedosas. Não se sentiu vítima, entretanto. Sentiu-se apenas aérea e transparente enquanto aqueles dentes afiados devoravam-lhe a carne, sentiu um orgasmo absurdo enquanto era devorada por aquela boca ansiosa, voraz e perturbadora.

...Hoje, ela ainda persiste. E existe na flor, no peixe, na planta, na pedra e no fruto. Ela existe na mulher; ela que assumiu todas as formas e sentiu todos os gozos, nunca poderia diluir-se totalmente num único corpo, carne ou sangue. Sua polpa foi comida, enquanto fruto, mas seu ser se alastraria daí para novas experiências. Essa foi mais uma das possibilidades que lhe deram as fadas e os duendes.

Ela foi todos os seres, e sentiu todas as sensações.
E hoje, em cada pedra pisada, em cada flor que se abre ao sol, em cada gota de água que bebemos, nós a relembramos como a força misteriosa e mágica que anima todo ser vivente.

Consagramo-nos ao sol e ao universo, assim como ela se consagrou.

Do Livro “ O Devorador de Palavras” - 1ª edição- 1983
sobre a obra

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A ÚLTIMA VEZ QUE VI MALU


foto: anti pigeon warfare - de anabananasplit

a última vez que vi malu ainda era primavera e a gente brincava dizendo assim o que é que há onde você está com a cabeça que não vê as flores na varanda do chalé nem sente as cores que se abrem junto e que derramam aromas de amoras e amores sobre nossas cabeças e narinas e esses cheiros eu carrego até hoje não sei se isso passou nem sei se isso aconteceu ou se foi apenas uma miragem imagem de um sonho ou cena de um filme ou...

a última vez que vi malu era o inverso da primavera era um inverno frio e nós dois como ursos hibernados dentro de um chalé no meio das montanhas geladas era serra do cipó ou eram os montes urais ou era no canadá nem sei só sei que as manhãs eram geladas e as maçãs não floresciam nem eu podia falar nem ela pois as mãos enregelavam quando a gente tentava apanhar as palavras saídas da boca e que se transformavam em cubos de gelo quebradiços que batiam no chão e ploft se acabavam em água fria sólida e nada ficava de sólido nem de nós no ar apenas aquela solidão indesejada aquele estar ali e de repente não saber estar e aí...

ai ai ai- da última vez que vi malu era um outono desses nostálgicos desses que bota a gente todo troncho pensando ah, outonos são aqueles do hemisfério norte em que as arvores envelhecem as folhas vermelhas que caem e formam tapetes lindos vegetais nos parques limpos e calmos ah, que nostalgia é essa desses outonos que a gente nem viveu? nosso outono era aquele dos ipês e dos apês a gente enrubescendo com sol e se arroxeando como os ipês que nos escandalizavam com a beleza insolente e crescente dos buquês coloridos só flores sem folhas aquela coisa linda e então...

da última vez que vi malu era verão e o sol ardia- ah! era verão aquela estação das propagandas, das cervejas, dos corpos nus ou quase, das caminhadas na praia, dos sol-nascentes e poentes policromáticos, das viagens a itacaré a jeri a caraíva ah...verões de sol em brasa e corpos idem mas da última vez que vi malu naquele verão não havia nada disso isso era apenas um conceito uma idéia nós estávamos atazanados com teses de mestrado e trabalhos finais e não tinhamos nem tempo de sair de casa para tomar uma cerveja com os amigos e eu me lembro de ter visto a malu ali linda com os braços cheios de livros e eu dei uma trombada nela e ela deixou cair os livros no chão tipo cena de cinema eu me agachando apanhando seus objetos ela sorrindo diáfana e...

não me lembro da última vez em que vi malu.

terça-feira, 14 de abril de 2009

MATE UM ANJO!

Atenção: Foi visto, revoando sobre a cidade, um bando bêbado de anjos, banjos voadores espalhando música, espalhando pânico, espelhando medo: um bando trôpego de seres, de longos cabelos verdes, cantando canções antigas como diamantes virgens. Não há como escapar aos desatinos desta raça, que se reproduz como os insetos. Incertos serão os nossos dias e drásticos nossos rumos, se não matarmos os anjos. Não há como se enganar: são pálidos, brilham , à noite parecem estrelas e de dia flocos de algodão, nuvens vagabundas vagando no céu. E os cabelos são verdes, tão verdes que os olhos doem. Não olhem para eles. Seus olhos fosforecentes transmitem uma força mágica que transforma aqueles que os encaram. Arrebatam-nos para o seu bando, carregam-nos, alteram-nos.
Atenção: Se avistar um bando de anjos, ou mesmo um único anjo, não duvide: mate-os no mesmo instante. Não tente dialogar, pois eles são ardilosos e trarão, nos braços, cestos cheios de promessas e doces ilusões. Dançarão valsas antigas, cazntarão cantigas de outros tempos, tendo ao fundo auroras boreais. Cantarão rocks e baladas de acridoce sabor, convidando à viagem: quererão levar-nos a passear em caudas de cometas, com destino a verdevermelhos campos de morango para sempre, e nos seus cabelos verdes banjos irão se tocar: banjos loucos irão se tocar, corda a corda, dessfechando mortíferas canções sobre nossas cabeças. E eles buscarão morada em nosso ser: serão ardorosos e quentes, apossando-se de nossos velhos corpos. Pulsará então, em cada esquina, em todas as esquinas, o coração, canção mais que cantada onde a vida se fez, se faz e se fará. Em velhos blues, o grito que jaz na garganta e o que explode no rock alucinado.
Atenção: armas estão sendo distribuídas, para que não sejamos destruídos. Informamos, a todas as pessoas responsáveis, que cabe a nós a defesa das nossas vidas, das nossas instituições. Não se deixem tentar, não ouçam seus cantos de sereias, ondinas chamando para a morte camuflada em vida e prazeres, vagando na espuma. Se virem os anjos, matem-nos. Nem sempre andam em bandos, por vezes voam sozinhos buscando seduzir aqueles que estão também sós, aqueles que vivem à procura de mais alguma coisa. A estes, apelamos: não há nada mais para se encontrar , tudo que é necessário encontra-se aqui, nada existe além de nossa esfera, tudo é ilusão. Não se deixem levar pelos anjos, que têm por missão corromper-nos e tumultuar nosso ambiente. Às armas! Não deixemos que invadam nossa intimidade, nem que nos toldem a vida. Matemo-los, primeiro! Ou eles nos exterminarão.

II

Onde a vida se fez, se faz e se fará, em cada esquina do mundo , no canto de cada poeta, na corda de cada guitarra, em cada uivo desesperado retumbando pelos quatro cantos da terra, dos céus e dos infernos, o anjo persistirá, e o banjo destruidor será tocado, tocando nossos corpos amortecidos com sua luz de grande intensidade. Serão ouvidos gritos repetidos, velhos blues voltarão pela noite, o rock alucinado pairando no ar como gotas, os velhos e novos cavaleiros quatro para sempre convidando a ver a vida que se encolhe sem jeito, não onde brotou o rock nem o grito desesperado do poeta, mas onde a mão incongruente traçou a linha e onde o grito fez-se ouvir, mas lancinante como o corte de espadas que calou as medusas líricas tísicas e pálidas: lembranças de lua, cadernos de viagem, domésticas alucinações: e o inferno pulsando, ao nosso alcance. E o céu, abrindo as comportas, convidando, convidando: A viagem no dorso dos poetas, dos profetas e dos mitos. O grito desesperado, a dor cortante, o céu e o inferno estão aí: os anjos sabem.

III

Eu fui tocado pela mão do anjo. Tu foste atingido pela luz do olhar do anjo. Nós nos transformamos, pela força da música que sai da boca dos anjos. Os anjos: suas mãos pálidas, seus longos dedos, suas noites de vigília. Sua insônia, seu momento criador, criaturas híbridas adensando-se na mente e no coração, ocupando o espaço, o tempo e a memória. Nós nos superamos quando, desobedecendo às ordens estabelecidas, encaramos os anjos, não com o medo a nós transmitido pela maioria, mas com a coragem de encarar coisas novas. Nós os resgatamos, do limbo a que estavam proscritos e os recriamos. Sim, encaramos e não nos arrependemos. Nós desobedecemos, comemos o fruto proibido, por isso somos e sabemos agora o porquê de tanto medo, de tamanha repressão. Os anjos incomodam, pela carga que trazem do novo; nós não tememos o novo, entretanto. Queremos romper as cascas, as couraças, ganhando novas alturas, sem medo das turbas e das tumbas ancestrais.
Nós não matamos o ano, nem por ele fomos mortos. Nós nos transformamos, e sabemos que dos ácidos verdes cabelos dos anjos, anjos outros hão de se criar, reperoduzindo a incoerência, fazendo crescer o não comum. E das valas da vida diária, destas valas apodrecidas em que temos vivido, um fulgurante brado surgirá rasgando a madrugada, quebrando as vidraças, destruindo para recriar. E os mortos gritarão, incomodados. Gritarão em uníssono, contra esta avalanche de coisa nova, de sangue novo que vem interromper seu sono de milênios.
Eu sei, nós sabemos.

IV

Eles estão conseghuindo. Estão conseguindo! Temos que nos mobilizar contra esta praga que a nós todos perturba. Estão roubando nossos jovens, que se rebelam e pregam contra nós. Eles são poucos, nós somos muitos, mas não estamos conseguindo! É necessário que acabemos com eles; para isso vamos intensificar a caçada. Não permitam que se aproximem, pois contaminam os locais por onde andam. Não há remédio para este mal.
A cidade inteira está em gritos, em pânico com a invasão dos anjos intrusos. Pelos inúmeros alto-falantes, espalhados pelos pórticos das moradias, a voz retumba, sonora e vingativa, clamando contra os invasores. Os habitantes abandonam suas casas, invadem as planícies, as montanhas, os topos das árvores e os fundos dos rios e do mar, procurando pelos anjos que podem assumir formas várias: são nuvens de algodão hoje, pássaros amanhã; ora são peixes, ora pedras. São frutos que se ocultam no mais alto das árvores, até vento são. E as pessoas abandonam suas casas, rumo à caçada, à árdua luta contra aqueles que estão em toda parte, onipresente ameaça. E a voz se eleva, cada vez mais soturna e áspera, conclamando ao extermínio dos intrusos. O que se vê então é uma incansável guerra contra tudo: florestas sendo derrubadas, nuvens bombardeadas, pássaros eliminados, peixes asassinados, pedras pulverizados. É a loucura coletiva que se apossa da multidão, destruindo tudo à sua volta, tentando livrar-se dos anjos, do feitiço dos cabelos verdes que geram diamantes e que convidam para aincríveis viagens cavalgando nuvens, que cantam de paradisíacos campos onde a poesia brota, cresce e se avoluma, transpirando pelos poros da vida, poema do dia a dia.

V

Eles, no entanto, reproduzem-se como os insetos e no pulsar de suas asas pulsa o sangue da vida, pulsa o novo: são crisálidas, grtávidas de luz, transformando os habitantes em fogueiras vivas. Dos seus cabelos verdes anjos outros hão de se criar, apesar da caçada insana. A idéia do anjo, guardada em sua pluriforma é a sua própria essência: não há como escapar à magia desta raça.

VI
Eu ouço falar de anjos, ouso falar de seus verdes cabelos e dos dimantes que brotam, virgens, de suas gargantas. E da luz irradiada pelos seus olhos. Além deles, o que nos resta? Uma cidade revolvida, florestas destruídas, rios secos, céus de chumbo, pássaros mortos, gente e gente cansada tentando eliminá-los. Numa luta inútil, já que eles não desistirão.

VII
Atenção: Declaramos cessada a temporada de caça aos anjos. Reconhecemos que nossos esforços foram inúteis;não há como detê-los e já não nos importa o que possa acontecer. Não sabemos que rumos tomar, sabemos apenas que incertos serão os nossos dias e drásticas nosssas vidas. Mas, definitivamente, não há como escapar aos desatinos e fascínio desta raça, que se reproduz como os insetos, derramando sobre nossas cabeças imagens candentes de sonhos, que há muito havíamos suprimido. Resta-nos apenas o retorno às nossas habitações, sentindo no ar este acre odor poesia e de música, penetrando em nossas carnes como adagas frias e impiedosas: estas marcas do anjo.

sobre a obra
texto escrito em 1983, inspirado por um grafite " Die Angels" e por um verso de Rilke, in " Elegias de Duino"
"Quem, se eu gritasse, eentre as legiões do Anjos me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos? Todo Anjo é terrivel. E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo do meu soluço obscuro"