quinta-feira, 21 de maio de 2009

AZUL PROFUNDO



foto: shades of blue - by Dannyman/Flickr


-Pare aqui o carro, amor! Quero ver mais de perto aquela planta. Veja como ela irradia brilho, como são verdes suas folhas! É fantástica! Pare o carro, quero observá-la.
O marido, contrariado, pára o carro aos poucos. O garoto, aproveitando a parada, salta para a estrada e começa a correr pelo morro abaixo. A mãe o acompanha, pois a planta repousa lá embaixo, na correnteza de um córrego. A natureza exuberante se escancara aos olhos cinzentos dos visitantes urbanos; aqui e ali grandes árvores cobertas de cipós e de belas orquídeas, o solo coberto de samambaias e musgos de todas as cores.O sol, se derramando, desenha filigranas de luz neste mundo que parece de fantasia e que convida ao ócio e à contemplação. Ela deixa-se levar por esse sentimento de lassidão e desce vagarosa, para não escorregar nas pedras pontudas que brotam do solo, rasgando a beleza, contraponto. O garoto já está lá embaixo e m olha os pés na calma e frieza do riozinho, compondo um quadro de beleza ímpar, numa perfeita integração com os elementos, onde a planta repousa, como rainha, com suas flores de um azul violáceo profundo, raízes mergulhadas no cristalino das águas.
Encontra-se agora na beira do rio, observando, fascinada, a planta que a atrai, hipnotizando- a. Olha-a encantada e não resiste:
-Amor, desça aqui, quero que você pegue esta planta para mim. Vai ficar linda lá em casa. Posso coloca-la num grande pote de vidro, para enfeitar a sala. Olhe a beleza das flores, que azul intenso! Anda, venha tirá-la para mim.
O marido desce contrariado a encosta, cansado, arranhando-se nos galhos e de mau humor entra no rio, para atender ao pedido da mulher. Aproxima-se da touceira de folhas verdes e flores azuis, leva as mãos por baixo para arrancar as raízes, mas não consegue tirá-la de uma só vez. Sente resistência, parece que está presa à água. Puxa com força, dá um safanão e assim, num arranco, a planta se solta. Volta à margem e entrega-a à mulher, que maravilhada passa as mãos sobre as folhas compridas e brilhantes, que brilham ainda, encantando-a.
À tarde retornam à casa, ela ansiosa entrando pela pela sala e chamando a empregada:
- Lúcia, olha só que maravilha de planta encontramos em nosso passeio. Veja só que brilho, que flores! Arranje um bonito pote de vidro para que a mergulhemos logo em água, pois pode murchar”. A empregada corre a buscar no armário um pote adequado, de cristal verde, que realçará ainda mais a cor fantástica da folhagem. Quando chega à sala encontra a mulher contrariada, nervosa, as flores haviam murchado de repente, pendiam mortas das hastes.
-O que aconteceu? pergunta Lúcia.
-Não sei, de repente, enquanto fui ao banheiro, elas murcharam. Será que é por causa do calor?”
-Não se importe, logo, logo, estará florida de novo, enfeitando a sala e colorindo-a com seus reflexos azulados.
-Deus queira, Lúcia, que ela volte a brilhar. É tão linda, que dá pena morrer. Cuide bem dela.
-Pode deixar. Colocarei pedras, adubo, logo estará bonita de novo.
No entanto, os cuidados pareciam dar em nada. A planta murchava, a cada dia, e as folhas, antes verdes, estavam foscas, sem sinal de florescência. Todas as manhãs ia a mulher a procurar botões, sinais de que novas flores estavam por surgir. Nada acontecia, entretanto; as flores teimavam em não despontar e ela não entendia o porquê. Com o tempo, foi se desligando, pensando em adquirir uma nova planta para colocar na sala. Iria a uma floricultura, compraria um belo vaso, e jogaria fora aquela planta que insistia em não florescer. Naquela noite, teve inúmeros pesadelos. Sonhou que estava novamente à beira da encosta, mas sozinha. Olhava a planta fascinada, e parece que se sentia hipnotizada por ela, que brilhava, fosforescente, no meio do rio. Entrava água adentro, procurando arrancá-la, mas à medida que caminhava, mais a planta se afastava e ela, desesperada., entrava mais e mais no rio, que já não era um rio, era um lago enorme, um espelho gelado que queimava em azul. Azul profundo. E sem saber nadar, ia aos poucos se afogando, sem conseguir tocar a planta. No auge do desespero, quase engolida pela água, acordou assustada, gritando pelo marido, que a acalma, o que é isso, mulher?
– Estava tendo um terrível pesadelo, sonhava com aquela planta da sala, que você arrancou do rio para mim. Ela queria que eu me afogasse num grande lago gelado queimando de azul.
– Ora, esqueça isso! Você anda muito tensa, pare de se preocupar com bobagens. Qualquer dia desses ela vaia florescer, vai ficar uma beleza, igual lá no rio, você vai ver.
A mulher, mais calma, volta a repousar, esquecendo-se do incidente desagradável, e passados alguns dias já não se lembrava mais do acontecido. Tinha-se esquecido completamente de retirar a planta da sala, para substituí-la por outra. Nos últimos dias estivera muito ocupada, muitos problemas, muitas decisões a tomar no escritório, onde era advogada. Deixara a cargo da empregada todos os pequenos detalhes caseiros, dos quais gostava de se ocupar, como hobby, e, entre eles, o de cuidar das plantas, que a tornavam mais calma, mais zen, mais bonita até, ela dizia.
Numa manhã de domingo, quase que por mágica, a planta apareceu verde e bonita, com folhas brilhantes e pequenos botões azul violáceos que começavam a se abrir, deixando entrever um interior aveludado, uma visão de rara beleza. O primeiro a notar fora o marido; havia acordado mais cedo para dar um mergulho, quando deu de cara com a planta enchendo a sala com a sua presença azul. Correu ao quarto, chamando a mulher:
-Vem, Juliana, ver o que aconteceu. Que beleza, você nem vai acreditar.
-O que foi, Renato? O que é? Que maravilha é essa que faz você me acordar a esta hora? Estou morta de sono, diga logo o que é.
-Não posso dizer, você tem que ver, está muito bonito.
Juliana levanta-se meio cambaleando. Está muito cansada, estivera ontem até tarde numa festa, bebera muito, e quase não se agüenta de pé. Quando chega à sala solta um grito de surpresa ao ver sua planta, que agora parece estar mais verde e de botões mais entreabertos. Não acredita no que vê.
- Meu Deus, que beleza! O que terá acontecido? Será que Lúcia usou algum produto mágico para fazer essa revolução? Animada, vai até o fundo da casa e chama a empregada, a perguntar-lhe o que tinha usado na planta para que ela se renovasse tanto.
- Não usei nada de especial, Dona Juliana. Aliás, eu nem tinha reparado nela hoje.Ontem, quando a molhei, estava seca e feia, como de costume. Deve ter acontecido um milagre nesta casa. Não entendo!
A partir daquele dia, mais bonitos ficavam os botões e mais brilhante o verde das folhas. Todos que vinham visitar o casal perguntavam que planta era aquela, onde haviam comprado, qual o nome. E o perfume? Ah , esse era indescritível, embriagava as pessoas, como se tivessem tomado taças de champanhe ou cheirado fragrâncias exóticas. Era adocicado e pegajoso, entrando pelas narinas até o sangue. Era alguma coisa de muito diferente, que começava a perturbar a vida dos personagens que viviam naquela casa. E desses, apenas a empregada percebia o que estava acontecendo.
Muitas vezes encontrara Renato , com aparência petrificada, olhando para a planta no meio da sala. Outras vezes, era Juliana que ela via, rabiscando flores azuis em sua agenda de compromissos. Julinho, esse é que deixava transparecer mais sua estranheza. Era cantor, tinha um grupo de heavy metal e curtia muito ocultismo e esoterismo. De repente, todas as suas canções passaram a falar de flores azuis, de labirintos intrincados, de bocas aveludadas, de sexo, muito sexo, quando antes suas músicas eram rocks políticos e engajados. Engraçado é que ninguém percebia o que estava se passando, a não ser Lúcia. Essa não mudara e nem se sentia afetada. Cuidava normalmente da planta, que a cada dia se tornava mais bonita. Só isso. Para ela, era apenas uma folhagem exuberante na sala de visitas.
Quando sentiu que as coisas estavam piorando, que as pessoas estavam ficando mais estranhas e afetadas, resolveu conversar com elas. Mas usou de uma tática diferente. Assim, para falar de Julinho, procurou os pais, dizendo que estava achando o garoto muito esquisito, que alguma coisa devia estar acontecendo com ele. Contou dos olhos vidrados, dos poemas que ele escrevia e jogava no lixo, coisas mórbidas e imorais, nem estava mais reconhecendo o garoto. Mas os pais não achavam nada disso estranho, dizendo-lhe que estava imaginando coisas, que o garoto estava atravessando uma fase difícil da vida.
- A adolescência é assim mesmo, Lúcia, cheia de novas idéias, de quebras de tabus, de rompimentos. Mas nada disso importa, é bobagem sua, dentro de poucos dias o Julinho fica legal de novo. Não se preocupe.
Com Julinho, nem conseguiu falar. Ela só o encontrava mergulhado no papel , escrevendo, escrevendo, ou então ouvindo música. Deixou as coisas como estavam, parou de se preocupar, voltando a cuidar de suas tarefas; que os três cuidassem, cada um, de suas vidas.
Muito tempo depois, numa noite, foi acordada com sussurros na sala. Nem sabia que horas eram, pois tinha dormido cedo. Os sussurros estavam baixinhos, mas percebia bem que vinham da sala e então, curiosa, levanta-se e vai até lá, para ver o que estava acontecendo. Evita acender a luz; não quer assustar quem quer que lá esteja. Quando chega à porta pára e fica a ouvir, reconhecendo Julinho, sentado em posição de lótus em frente à planta, como se cultuasse uma divindade. Sussurra coisas ininteligíveis. Algum tempo mais tarde ela teria que se recordar dessas palavras do garoto, para entender o que havia acontecido aos habitantes daquela casa.
Julinho sonha, Julinho delira, e a luminosidade azul violeta da planta colore seu rosto com uma aura que parece isolá-lo do mundo exterior. Julinho sonha, e de boca aberta soluça em frente à planta.Tem os olhos fixos na flor, na primeira flor que se abrira completamente, e nem sabe por que está ali.
Julinho delira
-Não, não, não, eu não tive culpa. Não, eu não queria, apenas aconteceu e não pude evitar. Meu Deus, não tive culpa. O que estou fazendo aqui? Não sei, estava em minha cama, dormindo, de repente encontro-me aqui. É um pesadelo, meu Deus, eu nunca havia me preocupado com isso antes, foi um fato que passou, foi há tanto tempo, eu era ainda um garoto todo vestido de branco, eu era uma ovelha vitima a ser sacrificada no altar. Lembro- me bem do ritual, de penitências e mea culpas mea culpas, mas eu não sabia, naquele tempo, das possibilidades do meu corpo e do meu espírito. Eu não podia imaginar que era muito mais do que um complexo de carne, músculos e nervos, sangue e pulsações. Pulsações. Pulsações.
Tenho febre, tenho frio, e esta flor aberta e aveludada me persegue. Vejo dentro ela e ela vê dentro de mim. É como um carrasco me vencendo aos poucos, sugando de mim toda a seiva, quer sobreviver a mim, quer o meu sangue, meu sangue precioso para poder viver. Tenho febre e tenho frio, e divago, transpiro, transfiguro-me e sou só delírio, eu percebo meu delírio e já não sou mais eu, sou apenas personagem de um sonho atormentado. Eu me reencontro, há dez anos atrás, ajoelhado em frente ao padre, no escuro, numa triste igreja de uma triste cidade . Cabelos pretos, olhos vivos, eu sou os pecados do mundo, eu sou os pecados do mundo. Mea culpa, mea culpa, senhor eu não sou digno, eu não sei a palavra, senhor, a senha, qual é a senha, a saída, tende piedade de mim, vinte e cinco ave marias e trinta pai nossos de joelhos e prometa nunca mais pensar nessas coisas nem ter maus pensamentos eu prometo, eu prometo senhor, eu criança sem consciência do pecado eu juro eu creio em deus pai todo poderoso maior do que eu, seixo rolando nas mãos do mundo, pião rodando na roda desconhecida, feito vítima, feito carrasco lidando com conceitos que eu não entendia. E inconscientemente arquitetando minha vingança. Sim, eu temia a Deus, mas não temia a deus, aquele deus. E o que se passava na minha cabeça, naquele tempo, ninguém sabia.
No dia da minha primeira comunhão, eu todo de branco, imaculado cordeiro abarrotado de conceitos e de barriga vazia, fui levado ao sacrifício. E na derradeira hora não vi Deus na minha frente. Vi uma flor entreaberta e aveludada, me chamando para si. Eu sabia que nãol seria perdoado mas eu me vingava e era doce a vingança: quando recebi a hóstia na boca tomei-a nas mãos e, para espanto de todos, mastiguei com vontade. Nessa hora o sangue escorreu pelos cantos da minha boca, em meio aos ohs de espanto e desespero. Eu sentia o sabor acridoce na língua. A boca manchada de sangue, os gritos das beatas, os desmaios, e eu me sentindo homem, eu, que me revoltei, eu, o vampiro excomungado. E a flor pulsava na minha cabeça; só muito mais tarde percebi que estava começando a traçar ali as primeiras linhas do meu caminho pelo mundo.
-Flor, flor, deixa-me, o que está se passando comigo, onde estou? Lúcia acorre, nervosa, a ajudar o garoto que caiu desmaiado no chão. Toma-o ao colo e o leva para a cama. Sente-o muito leve e pálido. Pobre menino! Voltando para seu quarto passa pela sala e percebe a presença enorme da flor, que domina todo o ambiente. Sente-se nervosa com o acontecido e vai dormir muito preocupada.
Nessa noite, Julinho sonha. E no sonho vê a flor crescendo, com sua boca aveludada entrando no seu quarto e engolindo-o, ele sentindo-se preso pelos estames, escorregando por aquela abertura viscosa, até perder os sentidos.
Está amanhecendo o dia e Lúcia já está de pé. Dormiu pouco, teve pesadelos, sonhou com Julinho sendo engolido pela flor da sala, gritando, pedindo socorro, e ela sem poder ajudar. Ficou assustada e perdeu o sono. Vai ao quarto para ver como ele está. Ao olhar a cama, um choque: Ele não está lá e a cama está desarrumada.
-O que será isso, meu Deus? Será que o sonho era real? Mas como pode uma planta fazer isso? Besteira, daqui a pouco ele aparece. Vou perguntar à Juliana se ele saiu mais cedo hoje.
Desce as escadas, à procura da patroa e encontra-a à beira da piscina, tomando sol. Lúcia não havia ainda notado, mas ela estava muito pálida, de uma coloração meio doentia, meio azulada.
-Dona Juliana, a senhora viu o Julinho por aí?
-Não vi, Lúcia. Também não estou encontrando meu marido, precisava que ele me levasse à cidade, se você o vir, chame-o aqui.
-Pode deixar, vou procura-lo para a senhora.
-Procure-o na biblioteca, pode ser que esteja lá. Ontem à noite estava lá, escrevendo, quando o vi pela última vez.
vaso com sua presença. Ela procura Renato por toda a casa, indo encontrá-lo no jardim, caído ao chão, usando a roupa da noite anterior. Tinha vindo ao jardim buscando inspiração para seu romance quando ouviu vozes chamando. Sentia que seu filho corria perigo e saiu para ajudá-lo. Ao mesmo tempo, porém, ouvia outras vozes, parecia um pesadelo. Mas estava acordado e sabia disso, pois sentia a grama úmida sob os pés.
-Venha Renato, venha me ver, venha viver a minha beleza, buscar em mim sua inspiração. Sou Íris, a mulher azul que vive em seus sonhos desde sempre. Sou a mulher ideal, a mulher perfeita e estou ao seu alcance, pulsando para recebe-lo. Não fuja de mim, você sabe onde estou, meu lugar é lá. Espero por você, não fuja dos meus apelos e dos meus labirintos.
Não se lembra do que lhe aconteceu depois. Apenas sabe que passou horas terríveis, das quais não se lembra completamente. Está muito pálido, sente-se mal, Lúcia o ampara e o leva para o quarto. Pede a Juliana que chame um médico para examina-lo.
Renato, a cada dia vai piorando. Está muito magro, constantemente tem pesadelos, acordando ensopado de suor, ouvindo o filho chamá-lo de longe, pedindo socorro. Lembra-se vagamente de túneis, de ondas azuis, de um amplo horizonte violáceo, de ter sido expulso de algum ninho, só isso. Com o tempo, enlouquece e é levado para uma casa de repouso.
Em casa, já não se fala mais sobre ele ou Julinho. Juliana já os esqueceu, apenas Lúcia tenta descobrir o mistério do desaparecimento do menino. Juliana quase não vai mais ao escritório , pois sente-se muito cansada. Passa os dias à beira da piscina, olhando fixamente para a água, hipnotizada pelo azul.
Lúcia quer deixar a casa, não se sente bem ali. Sabe que está acontecendo algo anormal , não sabe o que. Instintivamente, culpa a planta por tudo aquilo. Ela agora viceja, bela e imponente, dominando a sala. Lúcia parara de cuidar dela, mas não adiantou, não murchara, pelo contrário, ficava cada dia mais bonita e brilhante.
Uma manhã Lúcia sentiu algo de diferente no ar, quando acordou. Havia um cheiro forte pela casa toda, doce, pegajoso, e a porta da sala estava empenada. Quando tentou abrir foi jogada ao chão por uma onda verde de folhas e flores que cresciam, desordenadamente. Antes que fosse sufocada conseguiu correr para o jardim, onde encontrou Juliana sentada, com os olhos fixos no vazio, indiferente.
Desesperada, corre a procurar abrigo. Quando se volta, para observar a casa, já não vê mais nada de anormal; apenas um cheiro ácido domina o jardim, deixando o ar impregnado. Juliana não está mais lá. Quando entre novamente na sala vê que do vaso, até então belo e imponente, quase nada resta, a não ser folhas murchas, pendentes, e flores mortas, podres, ressecadas, que ainda guardam nas pétalas vestígios de um azul violáceo e profundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário