quinta-feira, 21 de maio de 2009

ANIMA


foto: cosplay team belgique anima - by: Kmeron?flickr

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade
.

Do poema “Evolução” de Antero de Quental

Havia nascido sob o signo da lua. E da água. Era de Caranguejo, e mutável como camaleão. Como a lua, tinha fases.

Nascera mulher, mas jamais se contentara com essa simples forma: queria ter todas as formas, ser peixe, ser pedra, ser planta, nuvem e bicho.
Por isso, a cada estação transmutava-se, fazendo uso de mágicos poderes que recebera de gnomos e duendes que encontrara um dia na rua, ela conta, e os outros ouvem espantados, quando sentem se materializar em suas palavras esses seres imaginários, duendes, gnomos e fadas. Ela conhece todos eles, sabe das vaidades, desejos e sonhos de cada um. Por isso, as fadas, duendes e gnomos deram-lhe mágicos poderes, e, entre eles, o de transmutar-se em qualquer ser vivente, poder que usa até a extrema exaustão.

Na última primavera, foi flor.
Renasceu como flor, flor vermelha e viva, e de manhã sentia a carícia do sol, como se fosse uma mão de homem penetrando-lhe os mais íntimos segredos. Abria sua corola e as pétalas separavam-se vagarosamente, para receber todo o brilho e todo o calor daquele sol benfazejo. E junto com o sol, sentia também o orvalho molhando-a e adentrando-lhe o corpo, como num interlúdio amoroso. E sentia toda a volúpia da flor no seu íntimo encontro com seus amantes naturais: o sol e o orvalho.

No verão, foi peixe.
E singrou profundezas abissais, navegando líquidas transparências, onde o sol atravessava-lhe as escamas e a fazia como um ser de brilhantes, brincando no fundo de um aquário gigantesco. E o sol ainda persistia, a lhe fazer carinhos através da matéria líquida. E sentia o cio do peixe, a maravilha de amar sob uma imensidão de mar e de procriar seres líquidos.

Após ter sido peixe, foi planta.
Frondosa árvore, carvalho milenar, havia se transmutado em árvore para sentir toda a sensação da seiva da vida a lhe percorrer tronco e galhos, para sentir toda a sensação de árvore, em seu habitat natural.. E ela toda foi planta, inteiramente. Buscava o sol nos seus mais verdes galhos e sugava da terra o sal e a água, matérias vitais. E o sol e a água novamente presentes em sua forma orgânica. Sentia a carícia da seiva a percorrer seu corpo e o sol a devassar seus galhos mais altos, com seus raios de calor.

No inverno, transformou-se em pedra. A mais minúscula das pedras, no meio de outros milhões de pedras iguais perdidas no meio do caminho. E em sua insignificância percebia toda a sua importância, como elemento de um mundo em que cada um tinha seu destino e sua história. Quando nevava, recobria-se de neve e sentia o frio a lhe penetrar a pele e os ossos. Quando chovia, gotejava a umidade que trazia vida. E quando o sol renascia, deixava-se ficar, exposta, sentindo-o em sua pele mineral, em todas as corres. Gostou muito de ser pedra, de ser a superfície, de ser pisada e amalgamada no chão. Sentira o gosto da terra, e novamente agradeceu aos seus protetores por experiências tão gratificantes.

Foi fruto, no outono. Doce fruto, de polpa macia e carne branca, a sentir a volúpia dos bicos de passarinhos a lhe abocanhar pedaços, no processo de amadurecimento. Sentia-se pendente do galho, solta no ar; dançava no ar quando o vento dava nos galhos da árvore. Ao final da estação, antes de amadurecer completamente, foi colhida por uma mão, que a acariciou como homem nenhum do mundo havia antes acariciado. E sentiu um respirar ofegante sobre seu hálito, e uns olhos que a olhavam com amor e ânsia. Sentiu depois os dedos dessa mão afundando-se em sua carne branca, e depois os dentes, grandes garras afiadas, a lhe devassarem a carne, como adagas impiedosas. Não se sentiu vítima, entretanto. Sentiu-se apenas aérea e transparente enquanto aqueles dentes afiados devoravam-lhe a carne, sentiu um orgasmo absurdo enquanto era devorada por aquela boca ansiosa, voraz e perturbadora.

...Hoje, ela ainda persiste. E existe na flor, no peixe, na planta, na pedra e no fruto. Ela existe na mulher; ela que assumiu todas as formas e sentiu todos os gozos, nunca poderia diluir-se totalmente num único corpo, carne ou sangue. Sua polpa foi comida, enquanto fruto, mas seu ser se alastraria daí para novas experiências. Essa foi mais uma das possibilidades que lhe deram as fadas e os duendes.

Ela foi todos os seres, e sentiu todas as sensações.
E hoje, em cada pedra pisada, em cada flor que se abre ao sol, em cada gota de água que bebemos, nós a relembramos como a força misteriosa e mágica que anima todo ser vivente.

Consagramo-nos ao sol e ao universo, assim como ela se consagrou.

Do Livro “ O Devorador de Palavras” - 1ª edição- 1983
sobre a obra

Nenhum comentário:

Postar um comentário